terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Porque era ela, porque era ele


Hoje acordei sinceramente apaixonada pelas flores roxas que serpenteiam meu caminho. Pelos mil verdes dos sertões Roseanos encontrados aqui na metrópole cinza. Hoje chove fininho, garoa na Terra da garoa, algo aparentemente incomum nessa época do ano. Nosso verão costuma derreter do jeito mais gostoso e infernal os corpos sedentos, mas hoje, assim como há uma semana atrás na praia, está garoando de uma maneira que prenuncia uma chuva torrencial. Há mais de uma semana houve notícia de um casal que morreu de mãos dadas na praia: os dois juntos, mortos pelo mesmo raio. Isso com certeza parece estória de filme romântico ou de folhetim do século XIX. Aqui vai a estória deles.
Sarah e Abelardo (não, não haveria nomes piores, pois isso tudo é extremamente inventado, tirando o final dos dois que é verídico de fato). Sarah e Abelardo passando o final das férias na praia, um casal comum, um casal banal com nomes esquisitos. Irônico essa coisa da hora da morte. Dessa atmosfera suspensa que é saber ou não quando se vai morrer. Ir à praia, “aproveitar as férias”, descansar... Tem algo mais vulgar que isso? Que essa trivialidade das coisas? De como o destino se desenha na nossa frente, como se fosse palpável, como se Deus brincasse diante dos nossos olhos de delinear nossos sorrisos, mas nós simplesmente precisássemos de mais, de mais concretude, de mais dor, de mais sensação do que é possível sentir, para enxergar tudo, para sentir tudo, para enterrar o que foi, para seguir em segurança. Segurando na mão de Deus ou da Morte, na mão de Venus ou de Baco, na fuga de Artemis, ou na sabedoria de Maria ou de Atena. Seguimos como Tomé, como Ulisses. Pedro, tu és pedra, e sobre ti construirei minha Igreja: Deus mostra o futuro na fé e a na dor. Mas quando se ama não se enxerga os sinais do apocalipse. Ninguém quer prever o fim da felicidade... esse final não existe no amor. E quando o final e a felicidade se encontram?
Saíram mesmo com o tempo ruim... de mãos dadas é claro. Naqueles dias em que os casais não têm muito assunto entre si, que mesmo fora da rotina, já há outra rotina pressuposta entre eles. Mas tudo bem... numa viagem é tudo tão gostoso: o cheiro da maresia, a areia misturada com o pé, a pele sentindo o sol imperar, mudando sua cor porque Ele pode e quer. E mesmo com a chuvinha iminente, saíram. Os dois acordaram felizes, se olharam com gratidão. Um beijo que desce pelo pescoço, a mão que desliza maliciosa, fazendo o carinho primordial da intimidade, arrepiando os dois corpos ao mesmo tempo em que se espreguiçam... querendo mais, tirando a camisola que já escorrega pelo corpo dela quase nu, os seios livres e só a calcinha representa uma barreira tão boba à mão dele. Ela, manhosa, vira de costas pra ele e ele começa a beijar sua nuca num gesto tão singelamente sensual e sussurra “eu te amo” enquanto morde de leve sua orelha. Ele não pode ver, mas ela sorri de olhos fechados, a mulher mais feliz do mundo naquele instante infinito. Ele passa a mão pelo quadril dela e continua lhe beijando as costas, ela vai se contorcendo e vira de frente pra ele, ainda sorrindo. Aquele sorriso gratuito de quem ama por amar, de quem sente tesão porque é inevitável não senti-lo pelo homem ao seu lado, de quem emana os melhores aromas da alma. Eles se beijam, naquele beijo demorado com o mau-hálito da manhã que nunca importa, aquele beijo arrastado em que as mãos se confundem porque querem tirar o resto de roupa do outro que ainda não se foi, aquele beijo ávido e inteiro, inteiro como o amor pela manhã, o melhor jeito de começar um dia. Nus, eles se tocam meio ludicamente, de uma maneira tão íntima e secreta, como se só os dois fossem capazes de entender aquela brincadeira que é se amar, então os corpos se juntam, se grudam, um ensaio de suor começa a se delinear pelos dois, se misturando àquela sensação insana que só pode ser saciada com o sexo, com o sexo puro, sem pedir esmola. Então ele a penetra: com vontade, com simplicidade, sem pressa, sentindo em cada nervo como é bom estar dentro dela, sentindo o gozo antes mesmo dele sequer estar se aproximando, o gozo que é transar com alguém escolhido e feito exatamente para você.
Continuam sua dança, um conduzindo o outro sem precisar falar nada. O gemido segurado, o suspiro sinalizador, o sussurro de promessas. O cheiro dos dois se misturando, se fundindo ali, enquanto ele continua suave em cima dela. Os olhares trocados como se entrar nela fosse desvendar todos os desejos da menina dos olhos que brilha num sonho partilhado. Os sorrisos, ah o sorriso doce. Esse é o mais belo momento: os sorrisos que se encontram e se desenham espontaneamente ao mesmo tempo. É o sorriso que antecede o gozo, o sorriso antes do extravaso, profetizador do auge. E assim é. O orgasmo sincronizado, aquele que só acontece em datas aleatórias, que só vem quando não se espera, pois não há preocupação com o gozo, o gozo está ali desde que se começa a tirar a camisola dela. Então ele vem, os dois se contorcem junto, ela morde o ombro dele e aperta as unhas em suas costas e ele sente tudo pulsar.
 Escovaram o dente e saíram para tomar café. Tomaram café com cumplicidade, um sabendo o gosto do pão e da fruta doce na boca do outro, sabendo-se por inteiro, sentindo o suco descendo pela garganta...a última refrescancia do corpo. É melhor sair antes que chova mesmo. E saem, saem de graça, a andar pela praia...o tempo nublado...a mesma chuva fina de hoje. Brigas sempre acontecem, meu bem. No fim do relacionamento a gente tenta lembrar-se do pior e nem sempre consegue. No final a gente só quer perdão, a culpa consumindo por lembranças que nem existem. Até que um dia você se lembra de quase todas, mas não lembra o motivo de duas e se sente idiota, estúpido. Todo mundo quer voltar no tempo nessas horas. Sara e Abelardo pela praia, eles não têm nenhuma lembrança ruim, tudo é paz e sol, o sol que não brilha, mas existe dentro de si, entidade que aquece no frio. Eles não pensam agora em voltar no tempo, em ficar mais tempo tomando café, em passar o dia no hotel. Será que pensaram isso na hora da morte? O que se pensa na hora da morte? Acho que nessa hora só há um “não”. Um não-pensamento, um não-sentir, um não-se prender, um não-se libertar.
Eles andam pela praia fria, o pé se molhando de areia e de mar, ressecando e arrepiando a pele. Felicidade gratuita essa, a de andar pela praia, de molhar o pé enquanto a brisa bate. Futilidades mal agradecidas. De mãos dadas, não precisam se falar. Tudo foi dito quando acordaram. Esse arrependimento com certeza não tiveram. Esse arrependimento egoísta de ter deixado de dizer coisas importantes pra quem se foi. A hora da morte é a sentença inenarrável de cada um, sua hora, aparentemente não sabida, é tão verdadeira quanto o amor da manhã de Sarah e Abelardo. Não se pensa em nada, não há arrependimento suficiente nessa hora, ou culpa ou alegria que te salve dessa hora. Então não nos negamos à morte. Ela vem e nos leva. Porque não há chance contra a morte. O fim é o fim. O fim que os vivos não aceitam. O fim feliz de Sarah e Abelardo. O fim aceito, como o orgasmo aceito naquela manhã.


Eles andando ali, um casal de anônimos, a chuvinha fina começa, eles pensam que logo ela vai embora, continuam a caminhada. Um raio se desenha no horizonte, um mau agouro talvez? Nada poderia ser mais irônico do que os sinais que antecedem a morte. Então ali, ela olhando em direção ao mar, ele olhando em frente, os prédios maiores... O Raio lhes veio súbito, íntegro, percorrendo o corpo dos dois, consumindo toda suas vidas, suas pulsões, seus maiores medos, seu amor mutuo, os sorrisos. O Raio que veio como o orgasmo: aleatório, forte e sincronizado. Vida e Morte. Morreram juntos. Ali porque Deus quis. Porque eles quiseram morrer na certeza daquela última sensação partilhada, sem imaginarem um fim diferente para si mesmos.  

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