quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Oração

Deus, me liberta dessa dor, desse castigo sem amor que é viver sem ele. Me fortalece na minha fraqueza, pois sou fraca e insegura e preciso dele para sorrir. Me deixa ir, Senhor, para mais perto de Ti, me faz sua filha, seu bem maior, me protege dos meus anseios e desejos mesquinhos, me tira desse redemoinho em que me enfiei.
Pai, ajuda que na hora certa eu saiba ser mais honesta e sinta a verdade sobre nós. Afasta os pensamentos falsos e mais ainda as pessoas mentirosas e maldosas de mim e dele. Transmite a ele como um sussurro que ainda o guardo e o cuido como nessa oração. Do meu coração tira a vaidade e mais ainda essa saudade que me escraviza e perturba, desasossego que amputa toda minha calma e ardor. Liberta, Senhor, leva a dor embora, não consigo mais enxergar qualquer aurora no que há ainda porvir. Por favor, meu Deus, tira de mim, do meu coração, toda essa invasão, esse aperto que me aprisiona e não me deixa passar um dia sem me lembrar dele. Apaga essas memórias, que eu me lembre delas como se fossem histórias distantes de mim. Sana meus sonhos, não aguento mais ver seu rosto me olhando longe assim. Só quero poder acordar sem essa vontade frenética de soluçar por não tê-lo por perto, certo, dizendo que me ama e adora e que tudo de ruim será jogado fora e que não desistirá de mim.
Tira de mim essa necessidade de ouvir a voz dele, de querer olhá-lo como se nada tivesse mudado, de mexer nos seus cabelos encaracolados e senti-lo dentro de mim. A saudade do seu gosto está me matando, mas nem por isso estou sangrando, pois esvaziei-me de mim. Por favor, amansa-lhe o coração para que ele me perdoe pelo o que causei a nós. Não consigo me libertar, nem se fosse o Senhor que me perdoasse. Me culpo todos os dias pela minha fraqueza e por essa dor e mesmo que eu não consiga eu quero que ele siga sendo o melhor de mim.
Nossa senhora, cobre-me  com teu manto. Sê uma mãe pra mim e mais ainda pra ele, para que ele assim se lembre de todo meu zelo e amor. Maezinha, é mais a Ti que peço, que afaste e renegue as pessoas mais mal intencionadas que só estão interessadas em implantar uma mágoa que nunca deve existir. E por isso mais ainda, afasta os sentimentos ruins de nós: a mágoa, a tristeza e o rancor....eu só quero o que for bom e doce, pois esse gosto amargo deve ser tirado de nossos corações.
E Lhe imploro: me invade de paz, me deixa confiar em quem mais confiei. Confiar nas lembranças boas, mais lindas que já tive e que o que sentimos é e foi real.
Deixa-me abandonar em Vós, para que quando eu fraqueje eu nao prejudique mais aquele que ainda amo, e mais ainda a opiniao que ele tinha sobre mim. 
Que as lembranças que me invadem vão embora, não aguento essa demora de poder voltar a respirar sem dor. Penso todos os dias na morte,não na minha nem na dele, mas na nossa, como um espírito que me roda sem me deixar ter qualquer pensamento feliz. E os poucos que tenho são mal interpretados e por isso mal levados e (talvez) mal encarados por ele. Meu Deus, toca-lhe o coração, se não, toca no meu, me livra, liberta, por favor, está doendo. O pouco de esperança que me resta é em Ti.
Me sossega, me acalma, tranquiliza. Que toda vez que desejar me dirigir a ele que ele queira o mesmo e venha até mim, para que não pense que não o respeito, nem em sua única vontade de estar longe de mim.
Que as lágrimas que escrevem essa oração pintem em mim uma canção de força e sabedoria. Quero entender seu tempo e plano, Meu Deus, mas a minha ansiedade me cega, me faz ignorante do que pode ser melhor para nós. Faz de mim uma mulher melhor, mais paciente, mais silenciosa, me perdoa. Me perdoa por ser assim inaceitável, ruim, insuficiente. Me completa, Senhor, me enche de paz. Acalma. Eu quero dormir apenas. Me aliena, me deixa esquecer o que passou, o que eu vivi. Mesmo que eu não queira. É  o que ele quer de mim. Eu quero satisfazê-lo. Ser mais do que eu posso ou consigo ser. Liberta, Meu Deus, liberta.
Então nessas rimas porcas, porem sinceras, é que eu peço a Ti, meu Deus, que leve embora todas essas dúvidas e me preencha esse vazio sem fim. Faz um milagre em mim, faz um milagre por nós em nós. 
Amém

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Ela morre no fim


"Dedico-me à cor rubra muito escarlate [...] e portanto dedico-me ao meu sangue"
Clarice  Lispector, " A hora da estrela"


Camila olha a lâmina da faca. É uma faca grande, bonita...a lâmina reluzindo, seduzindo-a pedindo a ela um beijo de misericórdia
Camila lambe a lâmina da faca....devagar, passa sua língua com amor pela lâmina. O gosto do ferro, do aço, o gosto das facas. Ela sente. Sente o gosto se misturar com o gosto de saliva. Termina de lamber e consegue se olhar no reflexo do metal: ela, patética apaixonada pela faca, por sua lâmina imortal. Camila poderia ser imortal se eu quisesse. Ela se olha na lâmina, seus olhos refletidos no frio da lâmina, seus olhos também lâminas frias que julgam. Julgam a si mesma julga a todos ao seu redor. Está obcecada pela faca, pela sua onipotência, seu poder, sua integridade. Camila era incompleta, a faca era inteira, perfeita. O seu reflexo não é perfeito na faca, a faca não quer refletir sua rival. Ela está fissurada pela faca. Desfigurada pela faca. Ela quer ser perfeita também. Passa a lâmina pelos seus pulsos, de leve se acariciando com a faca. Quer fazer amor com ela . Camila está nua e está passando a faca pelos seus seios perfeitos , a lâmina brinca com seus mamilos rosados. Camila desce a faca até seu ventre e sente a lâmina fria escorregar pelo seu órgão sagrado...ela sobe a faca até seu pescoço. Agora ela não está mais brincando. Quem manda em quem agora? A faca, entidade pagã dominando Camila em toda sua cristandade. Ela passa agora com força por seu pescoço, lentamente quer sentir cada gota de seu sangue escorrer pelo seu corpo. O gozo vermelho descer até o ventre violado. Camila se olha no espelho: o pescoço intacto. A faca ri dela. Sua lâmina reflete seus olhos. Eles estão sangrando. Seus olhos estão sangrando. O sangue escorrendo pela face, passeando pela garganta cortada e vazia. Brincando por seus seios...não chegam ao ventre. Camila está vazia. Lágrimas espessas de sangue tocam sua boca, misturando-se ao gosto recente de ferro e saliva....
É obvio que Camila está sonhando. Eu quero que ela esteja.
Ela acorda. Não subitamente, nem apavorada com seu sonho. Apenas se levanta, se olha no espelho e sorri. Um meio sorriso malicioso como se ela fosse capaz de entender todos os mistérios da vida. Ainda sente o gosto de sangue sujo de ferro e saliva. Sente percorrer lhe as veias. Está viva. É claro que está. Está morta apenas por fora. Seu sangue está pulsando dentro dela, ela ainda pode sentir. Ainda.
Camila só se chama Camila por que me lembra camomila. Ela sabe que eu existo. Ela me chama de Deus. De sangue. Ela só se chama Camila por pura ironia, típico clichê literário que ela é.
A faca está esperando por ela. O punhal entre a vida e a morte. Essa linha tênue fascina Camila. Ela está tão viva que quer morrer. Quer ser dona da verdade do mundo. Só a sua verdade não basta. Por isso ela se entrega a qualquer um, a qualquer pessoa qualquer.  Ela quer a vida dentro da morte. Na morte é que se vive de verdade, ela pensa. O sexo é vida em morte. É morrer e renascer. Ela se transcende na cama, com as pessoas...sente os homens entrarem nela e pensa: isso não é por prazer, isso é pra me manter viva e pra me manter morta. Esse gosto de sangue e ferro e saliva e porra e azedo. Camila quer ser maltratada , ela pede por dor, ela precisa de dor para seguir. Viver é brincar de morrer todos os dias. Ela não se espanta mais, ela só sorri. Esse meio sorriso cretino. O mesmo que ela dá a esses filhas da puta que comem ela. Eles pensam que ela teve um orgasmo ou mil. Ela ri desesperadamente. Gargalha da estupidez alheia. Eles pensam que é por prazer, ela só está se mantendo viva. O verdadeiro orgasmo virá quando ela for dona de sua própria estória. Destinadora de si mesma.
Camila acabou de descobrir que é apenas uma personagem. Que sua existência depende de mim. Ela sorri. Aquele meio sorriso. Ela não se surpreende, ela exigiu sua existência.
Camila nunca grita, a sua voz não se levanta. Ela está condenada a falar no mesmo tom calmo. Quando ela quer gritar ou chorar ela sorri. Ela ri. Ela dança. Ela tira fotos suas nua. Ela é bonita. Extremamente. Eu criei a perfeição em Camila. Mas ela é vazia. Vazia de tudo, vazia de si. Ela cheira a baunilha. E tem gosto doce. Extremamente doce. Mas ela é incapaz de sentir mais do que isso. Ela nunca vai poder gritar. Ela não consegue se irritar. Ela só sente o insosso e o caos da vida.
Eu poderia fazer Camila se apaixonar. Mas seria impossível. Eu faria todos a quererem. Eles pensariam que ela é perfeita, com esse meio sorriso enigmático e nunca grita, só ri: Camila é doce e calma como camomila. Ela goza infinitamente, ela aguenta horas calada. Todos os homens ridículos vão amá-la e os dois seriam cheios de vazio.
Camila pega a faca na sua mesa. Ela está acordada. Começa a se esfaquear. Transgride todo seu corpo. Esse é o grito de Camila. Ela está gritando. Mas ela é vazia. Seu sangue não escorre. Ele não existe. Ela se esfaqueia, mas o sangue não escorre, ele não existe. Ela é vazia. Ela está vazia de vida. Então ela dá aquele meio sorriso e espera a morte... O preenchimento de si mesma.