"Tenho certeza de que no berço a minha primeira vontade foi a de pertencer. Por motivos que aqui não importam, eu de algum modo devia estar sentindo que não pertencia a nada e a ninguém. Nasci de graça."
(trecho da crônica Pertencer de Clarice Lispector)
Como Clarice, nasci de
graça. Nasci no tempo errado das flores murchas sussurrando um suspiro de
morte, de dor alegre. Só depois, muitos anos depois de nascer é que saberia que
também, assim como Clarice, falhei na missão de curar minha mãe e só hoje percebi
que também deveria ter salvado meu pai e falhei. Falhei em minhas missões essenciais.
Pior do que isso, nasci
ladra: roubei tudo de meus pais, em especial de minha mãe – lhe roubei a beleza
do corpo, lhe roubei suas lagrimas com o gosto das amêndoas de seus olhos (o
gosto dos amores contrariados), seu cheiro em suas roupas e no nosso cobertor
dividido. Roubei o dinheiro e o único sonho do meu pai, o qual ainda não realizei.
Só hoje eu consigo sentir esta trava na minha garganta, a trava que todos
sentem quando perdem alguém que se ama tanto e (clichê) só se percebe na hora
em que partem. Esta trava, esta sensação de que não se respira, mas que na
verdade mal se vive neste lugar sem a pessoa que morreu.
Nasci ladra, baixa e
imoral, brincando de viver sem perceber que brincava de roubar, usurpar,
dissimular e sorrir. Antes não queria sonhar com meu pai, tinha medo de
enfrentar seu julgamento. Qual julgamento? Julgamento nunca veio nem nunca virá
porque lhe roubei o bom senso nos momentos de amor que tivemos. Hoje imploro a
Deus a chance de poder lhe abraçar mesmo que em sonho e sentir sua barba mal
feita, meio grisalha (clichê: morreu tão novo!) nas minhas mãos pequenas e
sujas – o carinho que lhe neguei enquanto ele vivia e sem perceber roubava lhe
e me roubava a mim mesma.
Hoje entendi porque a
minha mãe me odeia: ela me vê como a maior ladra de sua historia. Roubei-lhe o
marido, suas chances (chances de que? Todas elas), sua beleza, fui a lugares que
ela nem conhece, mas que agora sonha conhecer desde a sua infância negada. A mim
nada foi negado e o que não foi eu roubei, tomei como meu de suas mãos ásperas e
pesadas que pesaram sobre minha alma e meu corpo seu ódio e raiva pelo dolo,
por ter sido roubada pelo fruto do seu ventre.
Hoje ela me odeia mais
ainda, pois o que restou do meu pai, seu marido, será meu e não dela: estou
roubando dela sem querer, sem saber e sem nem por que suas lembranças, seu
reinado e suas historias com o homem de sua vida. Nossa vida, a vida que roubei
pra mim com o gosto amargo das amêndoas de julho.