sexta-feira, 16 de novembro de 2012

Ela morre no fim


"Dedico-me à cor rubra muito escarlate [...] e portanto dedico-me ao meu sangue"
Clarice  Lispector, " A hora da estrela"


Camila olha a lâmina da faca. É uma faca grande, bonita...a lâmina reluzindo, seduzindo-a pedindo a ela um beijo de misericórdia
Camila lambe a lâmina da faca....devagar, passa sua língua com amor pela lâmina. O gosto do ferro, do aço, o gosto das facas. Ela sente. Sente o gosto se misturar com o gosto de saliva. Termina de lamber e consegue se olhar no reflexo do metal: ela, patética apaixonada pela faca, por sua lâmina imortal. Camila poderia ser imortal se eu quisesse. Ela se olha na lâmina, seus olhos refletidos no frio da lâmina, seus olhos também lâminas frias que julgam. Julgam a si mesma julga a todos ao seu redor. Está obcecada pela faca, pela sua onipotência, seu poder, sua integridade. Camila era incompleta, a faca era inteira, perfeita. O seu reflexo não é perfeito na faca, a faca não quer refletir sua rival. Ela está fissurada pela faca. Desfigurada pela faca. Ela quer ser perfeita também. Passa a lâmina pelos seus pulsos, de leve se acariciando com a faca. Quer fazer amor com ela . Camila está nua e está passando a faca pelos seus seios perfeitos , a lâmina brinca com seus mamilos rosados. Camila desce a faca até seu ventre e sente a lâmina fria escorregar pelo seu órgão sagrado...ela sobe a faca até seu pescoço. Agora ela não está mais brincando. Quem manda em quem agora? A faca, entidade pagã dominando Camila em toda sua cristandade. Ela passa agora com força por seu pescoço, lentamente quer sentir cada gota de seu sangue escorrer pelo seu corpo. O gozo vermelho descer até o ventre violado. Camila se olha no espelho: o pescoço intacto. A faca ri dela. Sua lâmina reflete seus olhos. Eles estão sangrando. Seus olhos estão sangrando. O sangue escorrendo pela face, passeando pela garganta cortada e vazia. Brincando por seus seios...não chegam ao ventre. Camila está vazia. Lágrimas espessas de sangue tocam sua boca, misturando-se ao gosto recente de ferro e saliva....
É obvio que Camila está sonhando. Eu quero que ela esteja.
Ela acorda. Não subitamente, nem apavorada com seu sonho. Apenas se levanta, se olha no espelho e sorri. Um meio sorriso malicioso como se ela fosse capaz de entender todos os mistérios da vida. Ainda sente o gosto de sangue sujo de ferro e saliva. Sente percorrer lhe as veias. Está viva. É claro que está. Está morta apenas por fora. Seu sangue está pulsando dentro dela, ela ainda pode sentir. Ainda.
Camila só se chama Camila por que me lembra camomila. Ela sabe que eu existo. Ela me chama de Deus. De sangue. Ela só se chama Camila por pura ironia, típico clichê literário que ela é.
A faca está esperando por ela. O punhal entre a vida e a morte. Essa linha tênue fascina Camila. Ela está tão viva que quer morrer. Quer ser dona da verdade do mundo. Só a sua verdade não basta. Por isso ela se entrega a qualquer um, a qualquer pessoa qualquer.  Ela quer a vida dentro da morte. Na morte é que se vive de verdade, ela pensa. O sexo é vida em morte. É morrer e renascer. Ela se transcende na cama, com as pessoas...sente os homens entrarem nela e pensa: isso não é por prazer, isso é pra me manter viva e pra me manter morta. Esse gosto de sangue e ferro e saliva e porra e azedo. Camila quer ser maltratada , ela pede por dor, ela precisa de dor para seguir. Viver é brincar de morrer todos os dias. Ela não se espanta mais, ela só sorri. Esse meio sorriso cretino. O mesmo que ela dá a esses filhas da puta que comem ela. Eles pensam que ela teve um orgasmo ou mil. Ela ri desesperadamente. Gargalha da estupidez alheia. Eles pensam que é por prazer, ela só está se mantendo viva. O verdadeiro orgasmo virá quando ela for dona de sua própria estória. Destinadora de si mesma.
Camila acabou de descobrir que é apenas uma personagem. Que sua existência depende de mim. Ela sorri. Aquele meio sorriso. Ela não se surpreende, ela exigiu sua existência.
Camila nunca grita, a sua voz não se levanta. Ela está condenada a falar no mesmo tom calmo. Quando ela quer gritar ou chorar ela sorri. Ela ri. Ela dança. Ela tira fotos suas nua. Ela é bonita. Extremamente. Eu criei a perfeição em Camila. Mas ela é vazia. Vazia de tudo, vazia de si. Ela cheira a baunilha. E tem gosto doce. Extremamente doce. Mas ela é incapaz de sentir mais do que isso. Ela nunca vai poder gritar. Ela não consegue se irritar. Ela só sente o insosso e o caos da vida.
Eu poderia fazer Camila se apaixonar. Mas seria impossível. Eu faria todos a quererem. Eles pensariam que ela é perfeita, com esse meio sorriso enigmático e nunca grita, só ri: Camila é doce e calma como camomila. Ela goza infinitamente, ela aguenta horas calada. Todos os homens ridículos vão amá-la e os dois seriam cheios de vazio.
Camila pega a faca na sua mesa. Ela está acordada. Começa a se esfaquear. Transgride todo seu corpo. Esse é o grito de Camila. Ela está gritando. Mas ela é vazia. Seu sangue não escorre. Ele não existe. Ela se esfaqueia, mas o sangue não escorre, ele não existe. Ela é vazia. Ela está vazia de vida. Então ela dá aquele meio sorriso e espera a morte... O preenchimento de si mesma.

Nenhum comentário:

Postar um comentário